historinhasdamoleque

sexta-feira, junho 02, 2006

Carta do Professor Jose Pacheco para mim!!!!!!!!!!!!!


Bom-dia, Leila!
Tudo tem a ver com perguntas e com teorias. O rol de comentários breves, que fizeste, dariam para muita conversa. Mas, porque não fizeste perguntas, respostas não darei... Somente agradeço os comentários, enviando um textinho que publiquei na Sinapse e que não sei se será do teu (vosso) conhecimento. Esta é a versão "integral", que contém mais considerações que as que foram publicadas na Folha de São Paulo.

As escolas invisíveis

Perguntam os meus patrícios por que razão eu viajo tanto para o Brasil. E eu explico. Se comparadas ao Brasil, as escolas europeias dispõem de melhores recursos. Porém, acumulam-se as teses sobre o mal-estar docente, sem que se vislumbre a cura para a maleita dos professores. As escolas do "primeiro mundo" converteram-se ao digital, mas mantêm e reforçam práticas de ensino obsoletas. Os excelentes profissionais que elas albergam possuem saberes suficientes para romper o círculo vicioso do insucesso, mas o insucesso mantém-se e prospera. As escolas portuguesas têm meios para se afirmarem como espaços de democratização, mas estão acomodadas, cínicas.

Sem dualismos maniqueístas, é preciso afirmar que há, no Brasil, muitos professores que dão sentido às suas vidas, dando sentido à vida das crianças e das escolas. Sinto-me um privilegiado por, após três décadas de trabalho numa escola que ousou provar que a utopia é realizável, encontrar no Brasil tanta generosidade e responsável ousadia.

Em cada viagem, junto mais uma ou duas novas escolas ao já extenso rol. No extremo norte do país, um colégio busca a forma ideal de escola que dê a todos garantia do exercício da cidadania e de realização pessoal. Num hospital do sul, uma equipa de professores, técnicos de serviço social, animadores e voluntários suavizam os dias de crianças doentes. Num lugarejo perdido do Nordeste, a fé pedagógica faz milagres e produz um ensino que faria inveja de muito colégio (dito) de elite. Junto ao mar de Santa Catarina, crescem as paredes de uma escola sem paredes, que concretizará o sonho de um pequeno grupo de educadores. Em São Paulo, por detrás de um pesado portão protector, um jardim-de-infância feito à medida da criança comove o visitante mais insensível. Na periferia da grande metrópole, professores e pais juntam-se a amigos e pesquisadores, para dar forma a um projecto que transformou "salas de aula" em "espaços de estudo". Numa escola do Rio, os sonhos de uma escola à medida do Homem ganham forma, fazendo das crianças pessoas mais sábias e mais felizes. Sob o "mar de Minas", uma mulher empenha-se na humanização de uma academia de polícia. Na Bahia, um homem bom reinventou modos de ensinar e aprender e um grupo de voluntários leva esperança a uma escola no interior de uma favela. Perto do lugar onde Cora viveu, a tenda de circo e a ágora resgatam a vocação da escola. Em pleno centro da capital, a diversidade cultural assume contornos reais, uma fundação procura respostas para os "diferentes", e uma ONG suporta a humanização do sistema de relações numa escola antes condenada à desactivação.

Durante o período negro dos governos de militares, muitos projectos pereceram. Mas uma nova geração de educadores emerge. Uma ruptura paradigmática se anuncia. As escolas invisíveis não prescindem de um património comum e são alheias a modas pedagógicas. Assistiram à ascensão e à queda do modismo construtivista, e foram imunes ao fenómeno. Não fossilizaram Vigotsky e Piaget. Adoptaram-nos, adaptando-os, contextualizando-os. As escolas invisíveis recuperam uma tradição esquecida. Redescobriram Anísio Teixeira, que, nos anos 30, defendia a necessidade de mudar a escola, para que esta se tornasse um instrumento de mudança social. Reencontraram Lauro Lima, que, na década de 60, fez a reinterpretação brasileira do pensamento de Piaget. Recuperaram os contributos de Paulo Freire.

Apetece perguntar: por que razão os professores das escolas brasileiras não estudam devidamente estes e outros autores? Talvez porque nos centros de decisão e nos lugares onde, supostamente, se produz ciência, abundem teóricos redundantes. Já li disparates escritos sob a forma de trabalho científico. Se alguns teóricos adoptaram Dewey, outros rotularam o Anísio de "liberal conservador". Os teóricos redundantes, especialmente especializados em citações de citações, enfeitam as suas teses com "construtivismos" e quejandos, sem que façam a mínima ideia da realidade que subjaz às citações. Os teóricos redundantes são uma praga na formação de professores. Não geram conhecimento, apenas especulações que se refutam mutuamente e não fertilizam as práticas. As escolas invisíveis agem à margem dessas bizantinas criaturas e da sua despicienda labuta teórica, sem que fiquem cativas de um praticismo inconsequente feito de rotina e caprichos.

É sabido que um dos obstáculos à mudança nas escolas radica no predomínio de uma cultura pessoal e profissional dos professores, que os convida à acomodação. Mas importa acrescentar o que vem sendo escamoteado: quer essa cultura é reforçada pela formação de professores que ainda se vai fazendo...

O modo como os professores aprendem é o mesmo com que ensinam. Este inevitável isomorfismo da formação mostra-se fatal para as aspirações dos governantes a novas e melhores práticas escolares. Se os professores são formados em métodos passivos, poder-se-á esperar que desenvolvam métodos activos com os seus alunos? Mutatis, mutandis: se foram formatados numa inútil acumulação cognitiva, irão adoptar o modelo transmissivo.

"A mente apavora o que ainda não é mesmo velho" e, em muitas instituições de formação, existe algo comparável a uma conspiração de silêncio. Em quantas instituições de formação de professores se fala, por exemplo, de Ferrer e da tradição libertária em Educação? Quantos formadores de professores ousam mencionar Feyerabend e assumir o princípio que nos diz ser a poesia um meio de explorar a realidade, ou o Freud que nos diz que só se aprende algo por amor a alguém? Quantos assumirão que a "flecha do tempo" (Prigogine & Stengers) é, também, referência na relação educativa, ou que toda a inovação comporta a intervenção do acaso? Muitos autores foram banidos dos manuais. E não são poucas as universidades que sofrem dessa amnésia, que não se libertaram de um conceito clássico de ciência, e reproduzem fundamentalismos pedagógicos estéreis. Porém, apesar da escola de formação (e contra a escola de formação), os professores das "escolas invisíveis" rompem com o fatalismo da reprodução do insucesso e da exclusão.

Assim como certas correntes de pensamento, teorias e pedagogos permanecem invisíveis, também são invisíveis certas escolas. Mas estas por uma boa razão, porque a visibilidade social volta-se contra os projectos de mudança reflectida que essas escolas empreenderam. Há escolas onde a reelaboração cultural acontece e as concepções e práticas educacionais evoluem... discretamente.

Poderão pensar os mais cépticos que se trata de um devaneio. Pois que continuem a pensar. O Brasil desconhece o que tem de melhor. Uma reforma silenciosa, marginal às tentativas oficiais de reforma, está acontecendo por aí, num tempo de transição entre a História e o advento da Era do Espírito. Os professores que as habitam não recebem reconhecimento público. Por vezes, recebem injustiça, mas dão lições de resiliência. Esses professores são mal remunerados, mas não usam o baixo salário como álibi para a inacção. Constroem uma escola para todos com garantia de excelência académica. Não auferem de benefícios, nem aspiram à celebridade. Coleccionam dificuldades e incompreensões. Fazem milagres com os recursos de que dispõem, que o Brasil não é pobre em recursos humanos. O Brasil desperdiça recursos.

Os educadores anónimos que habitam as escolas invisíveis tecem uma rede de fraternidade. São fonte de esperança, num Brasil condenado a acreditar que, pela Educação, há-de chegar ao exercício de uma cidadania plena.

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posted by Leila País de Miranda @ 10:11 AM

1 Comments:

At 11:23 AM, Blogger Ilnea said...

Que coisa boa sentir que encontramos eco nas coisas em que acreditamos, mesmo que um oceano inteirinho nos separe dele. Há que acreditar, de verdade. E as coisas acontecem.
Um beijo grandão e um abraço maior ainda.
I

 

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